Tuesday, February 06, 2007

Dedicado ao g

«Sabe Deus – pensava eu –, se conseguirei alguma vez encontrar trabalho!» Tinham sido tantas as recusas, as meias-promessas, os «nãos» decididos, as esperanças nutridas e enganadas, tantas novas tentativas que sempre davam em nada que já tinha perdido todo o ânimo. Finalmente, tinha tentado ir para tesoureiro, mas chegara tarde; além disso, nunca poderia dar a caução de cinquenta coroas. Também me tinha voluntariado para o corpo de bombeiros. Éramos uns cinquenta lá perfilados, cada um a fazer peito para parecer um fortalhaço e um grande valentão. Recrutador andava no meio de nós, examinando os candidatos, apalpando os músculos, interrogando, e, ao passar por mim, só abanou a cabeça e disse que pessoas com óculos não serviam para o trabalho. Voltei a ir lá já sem os óculos e estava de testa franzida, tentando que o meu olhar parecesse ter a acuidade de uma faca, mas ele passou de novo por mim e apenas sorriu, porque me tinha reconhecido. Para cúmulo de todos os meus males, a minha roupa estava já tão gasta que os empregadores não me viam como homem decente.
Como era lenta e fatal a minha queda! Acabei por não ter posses nenhumas, nem mesmo um pente ou um livro que me consolasse nos momentos difíceis. No Verão ia todos os dias ao cemitério ou ao parque do castelo, sentava-me lá e escrevia artigos para jornais, coluna atrás de coluna, e não havia coisa que aqueles artigos não tivessem, quantas maravilhosas invenções, caprichos, devaneios da minha fantasia irrequieta! Em desespero, pegava nos temas mais abstractos, redigia os artigos durante muitas horas dolorosas, e ninguém queria publicá-los. Tendo terminado um, começava logo a escrever outro e raramente desanimava com a rejeição dos redactores. Tentava convencer-me de que um dia ia ter sorte. E realmente, por vezes, quando a fortuna me sorria e eu conseguia compor algo de jeito, pagavam-me cinco coroas pelo trabalho de metade de um dia.
Afastei-me de novo da janela, fui ao lavatório e molhei os joelhos das minhas calças coçadas para que parecessem pretos e ficassem com ar mais novo. Depois, como era hábito, meti no bolso o papel e o lápis e saí do quarto. Desci as escadas em bicos de pés para não chamar a atenção da senhoria; o prazo de pagamento da renda tinha acabado vários dias antes, e eu não tinha com que pagar.
Soaram as nove. O estertor das carruagens e as vozes da gente enchiam o ar – era o coro matinal das cem bocas, acompanhado pelos passos dos peões e pelos estalidos dos chicotes dos cocheiros. Aquele movimento ruidoso animou-me de imediato, e comecei a sentir-me mais seguro. O que menos tencionava era passear assim no ar fresco da manhã. De que serviria o ar aos meus pulmões? Sentia-me invencível como um colosso, podia travar uma carruagem com o ombro. Uma sensação incrível, maravilhosa, uma luminosa satisfação invadiu-me. Observava os transeuntes, apanhava no ar os olhares que alguém me lançava das carruagens que passavam a voar, reparava nos mínimos pormenores sem deixar escapar nenhuma infimidade casual que se me deparava para logo desaparecer.
Que lindo dia, faltava só poder comer alguma coisa!

Excerto de Fome de Knut Hamsun,
tradução minha a partir da tradução russa

2 Comments:

Blogger eu mesma said...

Gostei! Apesar das contrariedades, nada como uma boa atitude para se ter sucesso! Como se diz em bom português: Tristezas não pagam dívidas! Há que levantar a cabeça e não perder a esperança!

12:16 PM  
Blogger Unknown said...

eu hoje tou no dia das 5 coroas (que é como quem diz, das 5 páginas que é o que eu recebo!!!)

"Em desespero, pegava nos temas mais abstractos, redigia os artigos durante muitas horas dolorosas, e ninguém queria publicá-los. Tendo terminado um, começava logo a escrever outro e raramente desanimava com a rejeição dos redactores." LOLOLOL

Esse Knut é de que época? dos dias de hoje?!

12:39 PM  

Post a Comment

<< Home